Hikikomori (um texto que não é sobre o Japão)

“a nossa sociedade é dura para os fracos”

Kenta

Kenta é um Hikikomori Japonês. Esta expressão significa mais ou menos “auto-reclusar-se”, e refere-se aos jovens que passam mais de seis meses, por vezes até décadas, sem sair dos seus quartos para mais do que comer e ir à casa-de-banho.

Há no YouTube muitos vídeos sobre o assunto, e talvez todos eles se foquem na forma como este fenómeno se está a alastrar no Japão. Mas foi neste vídeo em específico que descobri uma nova estratégia que tem sido usada para lidar com este problema: irmãs de aluguer. E todos nós damos uma gargalhada: “só mesmo no Japão!”.

Bem-vindos ao Japão. O futuro! A terra do sushi. O mundo onde tudo é altamente tecnológico e avançado, as pessoas andam na rua disfarçadas de personagens fictícias, há desfiles em honra de Pokémons e os homens casam-se com hologramas. É o país da diversão, fantasia, e liberdade de expressão!… Só que não.

Para além deste 0,1% louco e colorido, tão frequentemente exibido nas redes sociais por ser tão excepcional, o Japão é um país onde é geralmente difícil ser-se Humano: e isso não é a consequência, mas a causa de tão exagerada celebração da fantasia.

Ao mesmo tempo que tem as taxas de crime mais baixas, o Japão tem as taxas de suicídio mais altas. É a 3ª maior economia do mundo e as ruas estão sempre limpas, mas a cosmovisão japonesa ainda fomenta muito racismo, xenofobia, patriarquismo, e um certo nível de discriminação religiosa. Os conceitos bem estabelecidos de honra e sucesso (financeiro, profissional, familiar) são uma pressão assombrosa sobre todos, especialmente os homens de todas as idades, que frequentemente trabalham cerca de 15 horas por dia e chegam a morrer por fadiga. O ditado popular “o prego que se destaca deve ser martelado” reflecte tanto a pressão social para a uniformidade, como a extensão das medidas que as pessoas estão dispostas a tomar para manter essa mesma homogeneidade. A comunicação intergeracional é formal e distante, e os relacionamentos significativos são escassos e demoram mais a construir no Japão do que, talvez, em outro lugar qualquer.

Esta foi uma descrição resumida, simplista e não detalhada do panorama socio-cultural Japonês, o qual simplesmente permite que as pessoas quebrem mais depressa e a uma escala mais vasta.

Neste vídeo, é dito que Hikikomori é uma condição “difícil de diagnosticar ou curar”, e que as suas causas são muito incertas e variáveis.

Eu creio que Hikikomori é difícil de diagnosticar porque não é uma doença, e é difícil de curar pelas mesmas razões pelas quais existe. Hikikomori é um sintoma: não de um, mas de inúmeros problemas que se amontoam, não apenas no Japão, mas em todas as sociedades do mundo em desenvolvimento. Por um conjunto de condições histórico-culturais, o Japão está apenas a liderar este sprint rumo ao colapso social, que está a acontecer, na realidade, a uma escala global.

As razões pelas quais cada jovem decide encerrar-se da sociedade são pessoais e podem ter a ver com a escola ou trabalho (bullying, opressão, marginalização), família (educação), personalidade, ou outras, ou algumas ou todas as acima. Mas a premissa comum em todos os casos é a seguinte: estas pessoas percepcionaram que a sociedade desistira delas, ou não valia o investimento, então, elas desistiram da sociedade.

E isto é o que jaz adiante para as nossas sociedades desenvolvidas, altamente urbanizadas e individualistas.

Um homem que se casa com um holograma de uma personagem fictícia, mesmo num país como o Japão onde isso é expressamente ilegal, não está excepcionalmente doido; ele está tão doido quanto todos nós, apenas parou de fingir primeiro – ou então perdeu a esperança mais cedo, e nesse caso talvez até seja o menos doido de todos.

https://www.sciencenewsforstudents.org/article/night-lights-have-dark-side

O estilo de vida moderno consiste num processo de Hikikomori a nível estrutural, e isto é causado por inúmeros factores desde a electricidade até à arquitectura das nossas cidades. Já não há comunidade, sentido de pertença, nem conexões Humanas profundas, e esta não deveria ser uma afirmação particularmente ousada ou surpreendente. O que existe hoje são meros fantasmas, e o mundo virtual é, ironicamente, a materialização disso.

As nossas sociedades são duras para os fracos. Mas as nossas sociedades são duras para todos, porque se esquecem que todos somos fracos. A sociedade somos nós. Nós esquecemo-nos.

Que alguns se quebrem é completamente normal. O verdadeiro problema reside no facto de que muitos se tentam adaptar, ignorando a escuridão que assombra, debaixo, por dentro, e adiante. A quebra é uma reacção. É um reconhecimento do problema. É uma incapacidade de o resolver sozinho. É um grito por ajuda.

Só não o ouve quem não quer. Nós precisamos de nos ajudar uns aos outros. As irmãs de aluguer são, se querem que vos diga, uma ideia óptima: elas exprimem o propósito nobre de conectar com estes jovens, ser uma presença gentil e recordar-lhes de que eles não têm culpa, mas têm uma escolha.

Mas o mundo não irá longe se continuarmos a comercializar a amizade. Não deveríamos precisar de ser pagos para estar disponíveis para ouvir, ajudar, construir relacionamentos. Quem recebe dinheiro para estar presente está a alimentar este conceito de que a amizade e o contacto humano são um luxo, um sacrifício, um incómodo dispensável.

Neste momento estamos todos muito desconectados daquilo que a Humanidade existe para ser; e, se não abrirmos os olhos em breve, as nossas tentativas de solução serão desconectadas também. Afirmo isto porque acredito que o ser Humano tem um propósito de existência, e acredito que cada uma das nossas características enquanto espécie foi planeada, desenhada, concebida para o nosso máximo proveito. Percebo também que um ser Humano nunca será capaz de se salvar a si próprio: na verdade, a única coisa que sabemos fazer sozinhos é encerrar-nos numa miséria, e isso está-se a ver.

Anteriormente disse que aquele que perde a esperança mais cedo talvez seja o menos doido entre nós. Nos tempos que decorrem, o optimismo é loucura. Acredito verdadeiramente nisso, mas quero terminar por afirmar outra crença que se sobrepõe a essa: o mundo precisa de mais loucos, ou, como G. K. Chesterton os chamou, optimistas irracionais: os que amam sem uma razão e estão dispostos a “tomar o mundo de assalto” para transformá-lo num lugar melhor, pois este é também a sua “casinha, onde podem voltar ao anoitecer”.

Não podemos exigir que alguém tenha esperança na sociedade se nós mesmos não lhe dermos razões para esperar algo bom. Nós temos o poder de fazer a sociedade valer a pena para alguém; para isso, o amor vem primeiro. Tem de vir primeiro. “Roma não foi amada por ser grande. Ela foi grande por ter sido amada.” Para verdadeiramente revolucionar, o primeiro passo é amar: independentemente daquilo que está diante de nossos olhos, e independentemente da nossa percepção. Isto é algo que nós temos de perceber e encarnar, se queremos recuperar as vidas valiosas que estamos a perder à custa do mero rumo que estamos a tomar. E isto é também o que temos de mostrar, através do nosso exemplo vivo, a essas mesmas pessoas a quem queremos regatar:

“A questão não é que este mundo é triste demais para ser amado ou alegre demais para não o ser; a questão é que, quando se ama alguma coisa, a sua alegria é a razão para amá-la, e a sua tristeza é a razão para amá-la ainda mais.”

G. K. Chesterton em Ortodoxia

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