Nós, pequenos seres Humanos, corremos extensões absurdas com o único propósito de não admitir que estávamos errados. Falo assim porque me conheço.
Somos mais defensivos do nosso autoconceito do que daquilo que acreditamos ser a Verdade. O nosso bem mais precioso é aquilo que achamos que somos, aquilo que queremos parecer. Quando erguemos uma bandeira em defesa de um ideal, mais do que a Verdade em si, o que está em jogo é o nosso ego. E talvez seja esse o pequenino objeto pelo qual sacrificamos mais nesta vida.
A nossa integridade individual é constantemente colocada em segundo plano em prol daquilo que decidimos parecer. À medida que perdemos a consciência do quão dependentes somos da visibilidade, a ideia de privacidade vai sendo diluída.
Há muitos conceitos sociais, como a privacidade, que têm sido relativos e moldáveis para a Humanidade ao longo do tempo e através das culturas. Mas algo que não é variável é aquilo a que Piaget chamava de “egocentrismo cognitivo”. Não é minimamente variável. A nossa incapacidade de sair de nós próprios e da nossa maneira de ver as coisas.
Ao longo do tempo desenvolvi esta visualização do nosso eu mental como sendo um toiro furioso a correr a toda a força em direção a uma parede de cimento maciço. Colidimos todos com essa parede: o limite da nossa abstração, a barreira intransponível da nossa arrogância, pressupostos e preconceitos, a partir da qual nos é impossível olhar para nós mesmos de fora, quanto menos sequer conceber a possibilidade de estarmos errados. Para uns a área funcional é relativamente vasta e vai sendo ampliada ao longo do tempo (não sem grande esforço e humilhação); outros parecem passar a vida às turras dentro dos mesmos três metros quadrados.
E este superpoder de orquestrar um aglomerado de células convenientemente posicionadas na retina de forma a criar um ponto cego onde mais nos favorece – nós não apenas temos uma trave no olho; com mestria arquitetural, nós colocámo-la lá.
E esta nossa capacidade de fazer truques de ilusionismo com os mais nobres valores e princípios a fim de justificar os atos mais vis e descompensados, sejam os nossos ou os da tribo com a qual nos identificamos.
Porque sim, é essa a nossa condição: somos tribais. A única diferença entre hoje e o século IV antes de Cristo é que os meios de comunicação e transporte do século XXI permitem ao Homem pertencer a uma tribo que está dispersa por todo o Planeta.
Tornamo-nos servos da nossa própria audiência imaginária, esta fábula adolescente de que somos personagens principais numa história dramática em que o mundo nos está constantemente a ver e a julgar – de uma maneira ou de outra, temos de publicar regularmente uma imagem atualizada de quem somos, ou não estaremos a existir.
A nossa necessidade de validação constante leva-nos a responder a perguntas que não foram feitas, numa ânsia de provar que não nos enganámos em pensamento. Sabemos que quando abrimos a boca parecemos imperfeitos, por isso ainda esperneamos na esperança de passar a ideia de que na nossa mente não há erros e de que em tudo somos capazes de tanto como os outros.
Na ausência da tão desejada validação, voltamo-nos para o nosso bom velho amigo, aquele lago tranquilo de águas límpidas que nos mostra exatamente o que nós queríamos ver: o reflexo da nossa face, brilhante e reluzente. Não há nenhum abismo mais sedutor. O olhar com que nos vemos a nós próprios é totalmente complexado, é certo; mas apaziguamos o nosso espírito autocrítico com algum mantra sobre amor próprio. Convencemo-nos de que, se apenas nos aceitarmos a nós próprios tal como somos, nada nos faltará. O problema é que a nossa visão de nós próprios é enviesada tanto pela negativa como pela positiva. O problema é que a repetição do mantra de que somos perfeitos não nos aproxima da perfeição; apenas nos torna cada vez mais incapazes de lidar com os momentos em que falhamos. Não há nenhum respeito, realismo ou honestidade para connosco próprios no ato de fingir que nada precisa ser mudado.
Rituais exteriores. Tudo é vaidade. Tudo é uma competição. Tudo é um pedido de socorro: dêem-me alguma atenção, senão eu morro.
Precisamos todos desesperadamente uns dos outros. Enquanto Humanos, fomos feitos para nos suportarmos mutuamente e nos sujeitarmos uns aos outros em serviço humilde, sem exceção nem aceção de pessoas. Mas o que vejo à minha volta é esta co-dependência virada do avesso: saudamo-nos uns aos outros, não sem uma pitada de condescendência, e então prosseguimos, cada um com a sua demanda individual, usando o outro para a satisfação dos nossos próprios caprichos ou deficiências emocionais.
O ser Humano é perito em convencer-se de que está certo e as suas motivações são puras. E são – cristalinas!, para o padrão da feira de vanidades que é esta vida. Na régua dessa montanha-russa todos temos altura suficiente para dar umas voltinhas. Não sem o seu custo, claro. A nossa alma pode morrer. Mas esse é um preço que estamos dispostos a pagar.