arte: essência(l)?

Há alguns dias, o Jornal Singapurano “The Straits Times” publicou os resultados de uma sondagem na qual 71% dos participantes votaram no “Artista” como sendo a profissão menos essencial na sociedade, logo seguida do “Televendedor” (69%).

https://www.classicfm.com/music-news/times-newspaper-survey-artists-non-essential-jobs/

Não questiono, de maneira nenhuma, a essencialidade e indispensabilidade dos Doutores, Enfermeiros, Colectores de Lixo, Pessoal de Limpezas, por aí adiante.

Mas viver numa sociedade onde a arte não fosse essencial parecer-se-ia mais ou menos com passar a quarentena sem qualquer tipo de música, livros, filmes, séries, websites, aparelhos electrónicos em geral, fotografias, jogos, trabalhos manuais, roupas, sapatos, maquilhagem, decorações, loiça, culinária, rótulos interessantes nos produtos… e quaisquer coisas que sobrassem nas nossas casas seriam feias (incluindo as próprias casas) e, na maioria das vezes, não muito funcionais.

É verdade que a maquilhagem não é um bem-essencial, e todos vamos sobreviver sem ir ver uma peça de teatro. Sim, dá para viver sem ver séries, e não é prioritário ter a casa decorada. Mas, em primeiro lugar, pensemos nas nossas profissões, passa-tempos, e ocupações do dia-a-dia. Quantas envolvem itens da lista do parágrafo acima? Quantos artistas profissionais estão por trás do estilo de vida que temos por garantido? Em segundo lugar, o caso da arte é mais profundo que isso.

Pessoas que dizem que a cultura é dispensável ou que os artistas não são essenciais dizem-no porque ainda vêem a arte e a cultura de uma maneira superficial, senão até, em certos casos, presunçosa e elitista. Para essas pessoas, arte e cultura significam concertos caros, pinturas caras, estátuas inúteis, ajuntamentos sociais baseados em tradições, e pouco mais.

Mas a arte é muitíssimo mais que isso, e, embora alguns façam esforços para que ela seja vista dessa forma, a arte não é, de maneira nenhuma, nem nunca será um luxo só para quem pode. Aliás, é quando as pessoas acreditam nisso que a arte começa a morrer.

O caso em defesa da arte não passa apenas pelo facto de que, se negligenciarmos uma faceta da cultura, 300 anos depois encontramos, talvez nos armários de um coleccionador, um instrumento no qual já ninguém sabe sequer como se pega, e a cultura esquecida desvanece sem deixar rasto. O argumento também não se limita ao apelo à misericórdia pelos artistas de profissão (se as pessoas deixarem de comprar CDs, eles não ganham dinheiro e as suas famílias podem passar fome).

O caso da defesa da arte firma-se no facto de que há arte em tudo, e eu refiro-me a literalmente tudo, o que os humanos fazem. A defesa da arte prende-se com o facto de que é ela que está aqui em nossa constante defesa.

Chamar os artistas de não-essenciais é muito comum e é a única afirmação sobre este tema que não causa escândalo generalizado (isto é, entre aqueles que não são artistas de profissão) – porém, para além de ser prejudicial, esta ideia de que a arte é, de alguma forma, secundária, não passa de uma ilusão. Na melhor das hipóteses, uma má interpretação do significado de arte e cultura.

Porque não há nada feito pelo Homem que seja isento de arte. Tudo o que sai da mente humana é inerentemente intenção, design, mensagem, expressividade, propósito, sentido de estética. Isso é arte.

Talvez alguém que se preza pelo seu pragmatismo nunca o terá concebido desta forma, mas todos os inventores da História da humanidade eram puros artistas. Da mesma forma, os artistas sempre foram inventores. Chama-se criatividade. Todos nascemos com ela, e o mundo perde muito cada vez que um de nós a deixa de alimentar.

Afirmo sem hesitar as duas coisas: que a arte está em tudo, e que todas as formas de arte são essenciais; porque a utilidade das coisas não se resume ao quanto elas contribuem para o nosso sustento físico. Coisas que nos sustentam intelectualmente, emocionalmente, socialmente, e espiritualmente, são igualmente úteis – essenciais! – para a nossa sobrevivência, mesmo enquanto espécie.

E enquanto cristã eu acredito nisto a um nível muito mais profundo. É que a Bíblia e o Mundo apresentam-me um Deus criativo. Um Deus inteligente e designer. Pelo que tenho concluído, encaro Deus, o ser Eterno que originou todo o Universo (material e imaterial), como um criador na sua essência, e, por isso, eu acredito que criar está na nossa essência também. Criar é experienciar a nossa semelhança ao carácter e natureza daquele que nos criou. Porque creio nisto e o vejo à minha volta, acredito que a arte não é um adereço, uma adição ornamental à nossa experiência humana; a arte está na nossa identidade, e é o meio onde nos movemos.

Realmente, na maneira como vejo as coisas, passar a quarentena sem arte seria passá-la sem Universo. Para mim, um mundo sem arte seria um mundo sem flores, sem rios, sem mar, sem árvores, sem frutas, sem animais, sem planetas, sem céu e estrelas, sem nuvens, sem chuva, sem lusco-fusco, sem arrebol, sem sol, sem montanhas, sem pedras, sem oceano, sem cores, sem um vislumbre do horizonte, sem proporção de ouro, sem o cantar dos passarinhos, sem os timbres das vozes das pessoas, sem pessoas, sem som, sem matemática, sem geometria, sem lógica, sem amor.

Prólogo da revista “Farol Sideral”.

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