cristianismo \\ política : o muro de separação

Apesar de muitos cristãos dizerem o contrário, hoje, no Ocidente, vivemos tempos privilegiados. A nossa liberdade religiosa ainda está longe de ser verdadeiramente posta em causa, e os valores da nossa sociedade ainda se baseiam grandemente nos Judaico-Cristãos. Neste momento ainda desfrutamos das consequências de séculos de influência da Igreja sobre o Estado. Mas tudo o que parece muito vantajoso merece a pergunta: a que custo?

Muito (muito!) se poderia desenvolver em resposta a essa pergunta. Mas um dos resultados inegáveis de toda a influência que a Igreja (Católica) teve sobre o Estado no Ocidente é o que se observa nos nossos dias: à medida que a sociedade muda e questiona os nossos valores, deparamo-nos com o facto de que já não os sabemos defender. Depois de séculos em que a nossa religião era a norma cultural, é trazida à luz do dia a nossa incapacidade de partilhar o nosso testemunho e fazer apologia da nossa fé. É por isso que muitos se lançam no escorrega rumo a um extremo em que a Igreja possa ter, de novo, algum poder sobre o Estado. É tudo mais fácil quando as coisas estão como queremos e ninguém se atreve a questioná-las.

Há alguns dias abordou-me uma amiga. “Eu concordo que a Igreja deva ser separada do Estado, mas não sei se é porque as pessoas querem fazer aquilo que querem e lhes apetece… O que achas, Rebeca?”

E a minha resposta imediata foi: é por essa exacta razão, e é exactamente por isso que a separação entre a Igreja e o Estado é tão importante.

Toda a gente tem de poder fazer o que quer e lhe apetece. E isso aplica-se tanto aos que não querem ir à igreja como aos que querem. E é aí que está a outra face da moeda, em todo o seu esplendor. A primeira vez que se registou a expressão “separação entre Igreja e Estado” nestes termos em específico foi, pensa-se, em 1802, numa carta escrita por Thomas Jefferson e dirigida à Associação Baptista de Danbury em Connecticut, na qual ele escreveu o seguinte:

[EN] “Believing with you that religion is a matter which lies solely between Man & his God, that he owes account to none other for his faith or his worship, that the legitimate powers of government reach actions only, & not opinions, I contemplate with sovereign reverence that act of the whole American people which declared that their legislature should “make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof,” thus building a wall of separation between Church & State.”

Thomas Jefferson

[PT] “Crendo convosco que a religião é um assunto que reside somente entre o Homem e o seu Deus, que ele deve prestação de contas a nenhum outro por sua fé ou por seu louvor, que os poderes legítimos do governo alcançam acções apenas, e não opiniões, eu contemplo com solene reverência o acto do povo Americano como um todo que declarou que a sua legislatura deveria “abster-se de fazer qualquer lei relativa a um estabelecimento de religião, ou proibindo o livre exercício da mesma”, construindo assim um muro de separação entre Igreja & Estado.”

Thomas Jefferson [minha tradução]

A citação que Jefferson faz refere-se à Declaração de Direitos da Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América. Em suma, tanto o que está escrito na Constituição como na carta de Jefferson demonstram a verdadeira intenção de expressar o facto de que o Estado não tem o direito de controlar a Igreja, ou, para os mesmos efeitos, a liberdade de expressão religiosa de qualquer indivíduo.

Não soa delicioso? Podermos acreditar no que quisermos, e ninguém poder tocar na nossa liberdade para agir em concordância? Então porque não poderia outra pessoa qualquer usufruir do mesmo direito? Lei mais básica da vida. Se queremos a nossa liberdade religiosa para participar de um estabelecimento que pratica a fé que temos, não nos resta outra opção senão dar a mesma liberdade a todos o que não querem ter nada a ver com a nossa igreja em particular.

Então e a depravação? Então e o pecado? Então e a rebaldaria total que seria a nossa sociedade sem a influência da Lei Judaico-Cristã? Então e os antirreligiosos que querem destruir o Cristianismo e continuar numa sociedade em que a Igreja não tem influência sobre nada?

A questão está naquilo que entendemos por “influência”. Queremos ter influência sobre a sociedade através do nosso exemplo vivido? Ou queremos ter poder? Queremos ter influência no sentido de usar os nossos dons e talentos para liderar movimentos que impactam vidas e trazem paz, justiça, prosperidade, e a luz de Cristo às nossas comunidades locais? Ou queremos, através de manobras políticas, assegurar que temos sobre os outros o controle que temos medo que eles venham a ter sobre nós?

Noto que, aquando das eleições, imensos crentes buscam declaradamente usar o seu voto para “cristianizar as nações”. Apesar das suas boas intenções (atingir uma sociedade melhor, mais justa, próspera, ordeira, respeitosa), a ideia de “cristianizar uma nação” jamais passará do seguinte: introduzir o Cristianismo como cultura através da política. De relance, isso pode até soar bem.

Mas o Cristianismo não é cultura – ele é para lá da cultura, redime aspectos da cultura, e, acima de tudo, abraça todas as culturas. O Cristianismo tampouco é política – ele reflecte-se nas nossas decisões políticas. E, finalmente mas não de menos importância, as nações não podem ser cristãs – quem o é ou deixa de ser são os indivíduos, porque o Cristianismo é um relacionamento com Deus, é uma escolha de vida que transforma, de dentro para fora, todas as dimensões do nosso ser e agir – e isso deriva de decisões pessoais, não de normas socioculturais.

O que a Igreja, portanto, tem de ter é influência na sociedade. Mas a “sociedade” somos nós, aqueles que nos rodeiam; pessoas, experiências, mentalidades. Por isso, “influência na sociedade” significa influência através dos nossos relacionamentos e exemplo pessoal. Não significa poder político. Foi disso que os Reformadores quiseram escapar quando veementemente criticaram a igreja Católica e todos os abusos de autoridade que representa a figura do Papa. Porque, no fundo, Historicamente, o Papa não passa disso: um político.

E de onde vem, sequer, a ideia de que o poder político é um bom caminho para difundir a fé Cristã? Uma das coisas que Jesus fez questão de deixar claro é que ele jamais seria um líder político, e que o Cristianismo não era de todo um movimento político, e que a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus (Mateus 22:15-22).

É certíssimo que, através da política (assim como através de qualquer outra esfera ou vocação), os cristãos podem e devem agir em prol do bem-estar e prosperidade da criação. William Wilberforce, o político-chave na abolição da escravatura no Reino Unido, era crente, e fez o que fez motivado pela sua fé. Dietrich Bonhoeffer, teólogo e pastor luterano, foi um membro importantíssimo da resistência alemã antinazi. Os Founding Fathers. O próprio Partido Republicano, conservador e promotor dos valores Judaico-Cristãos, foi criado em 1854 precisamente para lutar contra a Confederação e abolir a escravatura nos EUA. Isto para nomear apenas alguns vultos com uma biografia e história notável. São estes entre inúmeros outros, muitos sobre os quais nunca ouviremos falar.

A questão é que há uma diferença, na prática talvez difícil de perceber, porém abismal, entre deixar que a nossa fé beneficie a nossa política e usar a política para beneficiar a nossa fé em particular. Ser um cristão envolvido na política é muito diferente de misturar Cristianismo com questões de Estado.

Dar um bom uso à política para redimir os aspetos da nossa cultura que foram manchados pelo pecado não pode jamais assemelhar-se à imposição dos nossos valores e crenças sobre os outros. De outro modo, nenhuma aplicação dos mesmos seria totalmente genuína. O livre-arbítrio é o teste da falseabilidade.

Se somos Cristãos, somos imitadores de Cristo – e, se há coisa que Jesus sempre fez, foi deixar os outros fazerem o que queriam e lhes apetecia. Mas isso é difícil porque implica uma grande convicção de nossa parte – para nos mantermos firmes mesmo quando ninguém à nossa volta pensa da mesma forma. O facto permanece, também, que nem Jesus nem os 12 apóstolos enveredaram pela política, e deixaram claro que jamais o fariam. A missão de evangelismo é testemunhar o amor de Jesus na nossa vida diária, porque só isso impacta indivíduos levando à transformação “de dentro para fora” que realmente causa mudança na sociedade. É natural que isso se reflicta nas nossas decisões e intervenções políticas – mas, por tudo o que já constatei, não podemos esperar que o nosso voto cristianize uma nação, muito menos que um político venha salvar o país.

A política não é a causa, mas sim o reflexo das correntes de pensamento dominantes na sociedade. Por isso, quando uma geração de cristãos sente necessidade de conferir poder político à sua instituição religiosa, descobre-se apenas o quanto temos falhado, não apenas em testemunhar, mas primeiramente em entender a nossa fé de uma maneira profunda e significativa. A necessidade de recorrer ao poder político é prova de que a verdadeira fé, que renova e transforma mentes e corações, não está a ser vivida, muito menos espalhada. Apelar à associação da religião à política não é um acto de liberdade religiosa, é um ataque a ela, e mais: é um acto de comodismo e medo – medo de termos de voltar a viver uma fé genuína, e não apenas uma ilusão cultural em que o nosso “inimigo” tem receio de se revelar, e, por isso, nunca somos colocados na posição de ter de aprender a amá-lo.

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