o Deus (do) extravagante

camelia

A revolução industrial prensou na humanidade norte-ocidental um novo pecado original: a obsessão pela produtividade.

A vénia à indústria. A crença de que quanto mais eficiente, melhor. A incessante demanda pela opção que der mais lucro. O mecanicismo. A febril repetição de movimentos e replicação de modelos em busca de consistência. A rejeição de todo o resto. A busca por mais, mais rápido, mais indispensável.

E, quando se enfrenta uma crise e se tem de reduzir tudo ao indispensável,

sobrevive a indústria,

e corta-se primeiro no “entretenimento” e na “cultura”.

Talvez daí surja o meu síndrome de impostora quanto a ser violinista. “Huh! Para ganhar dinheiro, toco um instrumento… Que estranho, ter um passatempo por profissão.”

Esta conceção que nos é quase inata de que a arte é o extra, o supérfluo na sociedade. A arte não produz riqueza. A arte não é propriamente útil. A arte não é essencial para a economia. A arte não é necessária para a nossa sobrevivência.

Ilusão após ilusão.

E dizer que isto são ilusões não se trata apenas de reafirmar: nada existe sem criatividade. (A casa onde vivemos teve um arquiteto. O carro onde andamos teve muitos designers. As roupas que usamos, as séries e filmes que vemos, a música que ouvimos, os livros que lemos, as fotografias que admiramos, os websites que visitamos, os computadores e telemóveis que usamos para tal, são todos produto do trabalho não só dos engenheiros, mas dos músicos, escritores, filósofos, desenhistas, pintores, fotógrafos, compositores, diretores de luz e som; os “inúteis” desta e doutras gerações).

Trata-se, muito mais que isso, de observar: a humanidade sempre reconheceu a essencialidade da arte para a sua própria sobrevivência. Isso mudou muito recentemente na História – por nada mais, nada menos que um capricho moderno de “evolução e progresso”.

Foi quando o homem começou a convencer-se de que, com o avanço tecnológico na mão, era capaz de qualquer coisa que quisesse, que despoletaram duas Guerras Mundiais, se iniciou o problema galopante da poluição, e se passou a acreditar que “a cultura não é essencial”.

Enquanto professora de violino já tive a oportunidade de me cruzar com vários indivíduos diferentes – de diferentes idades, etnias, géneros, crenças, religiões e opiniões políticas. Mas todos se encontraram comigo à procura da mesma coisa. Aprender violino, sim – mas aprender violino como veículo para achar resposta a uma pergunta que ultrapassa todas as questões financeiras e económicas. Uma pergunta transversal a todas as pessoas que alguma vez respiraram neste planeta. Uma questão existencial.

O que é que eu estou aqui a fazer?

O que há para além da minha rotina diária, do meu trabalho numa fábrica ou num escritório?

O que há para além da saúde física e do conforto financeiro?

Onde está, verdadeiramente, a vida?

A arte é a prova de que o ser humano anda à procura do transcendente. A mera existência da arte é a prova de que o ser humano não existe sem isso. Sem o transcendente, nem sem a busca por ele.

O curioso é que a nossa mente não sabe imaginar nada para lá dos seus próprios limites. Eu não consigo, por exemplo, imaginar uma cor que não esteja no meu espectro visível. Da minha perspetiva, não consigo imaginar uma cor que não exista. E, contudo, o facto de eu não a ver não significa que ela não exista…

Mas que todas as pessoas em todas as culturas ao longo de toda a História tenham não só imaginado, mas corrido atrás de algo mais… Algo para além da nossa mortalidade… Algo para além do nosso desamparo, das nossas dores e dos nossos males…

Isso diz-me que algo maior que a mortalidade existe – e, aparentemente, foi colocado em nós.

A revolução industrial propôs o urbano. O urbano seduziu, mas, com o passar dos séculos, não satisfez. Todo aquele que se sujeita à vida na urbe acaba por descobrir, um dia, que a mesma erosão que acontece no cimento acontecerá num coração que não é regado há muito tempo. Mas aquilo que regava o nosso coração ficou lá atrás, no Templo dos Judeus, ou nos devaneios da Grécia Antiga, ou nas catedrais da tão-caluniada Idade das Trevas. Ou então nas mãos de uns quantos delinquentes que agora vandalizam os nossos edifícios com tintas em spray. Ou ainda nos cofres de uma evasiva elite…

O nosso corpo é um veículo que se mantém com comida e comodidades, coisas que neste mundo se conseguem com moeda de troca. Mas a água que rega o nosso coração, e o mantém consciente da vida que tem, é imaterial e difícil de descrever. E quem traz dessa água a este mundo não um faz por um preço – fá-lo porque também a quer.

Ao mesmo tempo que procuram o transcendente, sem saberem, os aprendizes de violino vêm ter comigo em busca da mesma coisa que procuram no consultório de um hospital – a preservação da sua vida.

E, na arte, a humanidade encontra não só um unguento para as suas aflições internas, mas uma torrente inesgotável daquilo por que as nossas almas mais anseiam.

Se na ciência e na medicina encontramos as nossas necessidades supridas, na arte encontramos uma porta aberta para a fonte da própria vida.

A porta para a fonte da vida não está na biomedicina molecular, nem na engenharia genética. A porta para a fonte da vida está na beleza. Na beleza em si; na beleza de tudo. Não na beleza cosmética. Antes, na beleza da bondade, da misericórdia, da verdade, da criatividade, da Natureza.

Porque a beleza diz-me que há um Artista por detrás. A beleza e a minha capacidade de a contemplar dizem-me que eu não estou apenas programada para sobreviver; eu estou programada para apreciar a vida, e a vida em abundância. Eu estou programada para me dar ao luxo de parar, respirar fundo, e meditar sobre o bem e o mal, a ordem das coisas, as razões porquê, a origem de tudo. E sem isso eu não vivo realmente. Eu fui feita para precisar do extra, do demasiado. Aquilo que se chama de supérfluo é, afinal, o núcleo de toda a minha existência.

Comparar a Natureza com os produtos da revolução industrial faz-me lembrar desta frase escrita por um dos primeiros cristãos, que viu Jesus no século I da presente Era:

Desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus (o seu eterno poder e a sua natureza divina) têm sido vistos e percebidos claramente, através da Natureza. Por isso, os homens que não acreditam em Deus são indesculpáveis. É que, tendo visto as provas de que ele é Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe renderam graças, mas os seus pensamentos tornaram-se fúteis e os seus corações insensatos se obscureceram.

Romanos 1:20,21 – paráfrase minha da Nova Versão Internacional

Se na ciência e na medicina encontro um Deus que é poderoso para me criar e me suster,

na arte encontro um Deus que é generoso para me amar em abundância. Um Deus que providencia além do necessário. Generoso e generativo; um Deus que cria além do útil, além do lucrativo. Um Deus que cria apesar da perda. Um Artista que se sacrifica pela sua criação. O Deus do belo. Do excessivamente, desnecessariamente belo. O Deus Belo.

O Deus (do) extravagante.

A fonte de onde toda a arte, num ato de plena entrega e devoção ou inocente e sem suspeitar, drena toda a sua extravagante beleza.

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